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Casa Nossa


 1. INTRODUÇÃO

Entre as diversas finalidades dos edifícios está a necessidade de abrigar as diversas atividades humanas; constituir-se não apenas em abrigo das funções materiais, mas, sobretudo, em abrigo do afeto (LEITÃO, 2002) e dos desejos.

A arquitetura vernácula, também conhecida como arquitetura sem arquiteto, pode ser definida com aquela produzida através da tradição e do conhecimento transmitido de geração a geração, Figura 1. Apresenta-se com forte ênfase em aspectos pragmáticos e funcionais, mas também carrega uma boa dose de simbolismo que reflete as aspirações e interesses de um grupo social (KAUFMANN, 1996).

Os conceitos da Psicanálise, introduzidos por Freud no final do século dezenove e início do século vinte, produziram significativa influência em diversas áreas do conhecimento (CHAUÍ, 2002; JACQUES, 1973; MONEY-KIRLE, 1973). As noções de inconsciente e de sublimação dos desejos inconscientes afetaram particularmente o campo das atividades artísticas (ZIMERMAN, 2001; MILNER, 1973; LACAM, 1997), embora pareçam exercer pouca influência na atividade profissional dos arquitetos, responsáveis pela produção do abrigo humano.

Kaufmann (1996) ressalta que os edifícios constituem-se em obras coletivas, pois apesar de serem fruto da criação individual de seus projetistas, encontram-se ordenadassegundo normas da comunidade em que se encontram inseridas e devem atender às demandas e interesses dos usuários a que se destinam; sejam essas de natureza pragmática ou simbólica.

Os simbolismos sempre estiveram presentes nas obras arquitetônicas ao longo do tempo e em diferentes contextos culturais, como demonstrado por Leitão (2005). Esses simbolismos se encontram presentes, tanto nos edifícios como um todo, como nas suas partes (quartos, sótãos, janelas, portas, fechaduras, etc.).

Ao longo da História, pode-se perceber a existência de representações de poder e status social, como se verifica na ‘casa dos homens’ da maioria das aldeias indígenas brasileiras, na monumentalidade dos templos de diversas religiões e dos palácios de chefes de estado, ou mesmo em túmulos, cujos exemplos mais eloqüentes encontram-se nas pirâmides do Egito. Muitas dessas obras ainda se apresentavam como reflexo de estratificação política, social, religiosa, ou econômica desses povos.

Nos conventos franciscanos edificados no Brasil, por exemplo, era notória a distinção arquitetônica entre a igreja principal (maior e mais rebuscada) e a capela (menor e mais despojada) destinada à Ordem Terceira de São Francisco, Figura 2.

As edificações destinadas a fins religiosos parecem apresentar, deliberadamente, uma forte carga simbólica, devido ao alto teor do imaginário humano presente nas relações do homem com seus deuses. No entanto, nas obras da arquitetura civil destinadas a abrigar o poder (independente de sua natureza social, política ou econômica), a carga simbólica também se encontra presente com bastante vigor, Figura 3.

Nas construções residenciais esses simbolismos expressam, muitas vezes, o resultado dos conflitos ou da superposição de desejos dos agentes envolvidos na produção do espaço habitado: o mercado imobiliário e seus modismos, os arquitetos e os próprios usuários. Essa interação ocorre de forma particularmente interessante nas construções residenciais, devido à importante carga simbólica associada à casa (KAUFMANN, 1996).

 

As reflexões aqui apresentadas foram sendo construídas ao longo de duas décadas de prática profissional como arquiteto, cuja maioria dos trabalhos consiste de projetos arquitetônicos de residências unifamiliares. Esse tipo de projeto apresenta aspectos peculiares. Entre esses, está o fato de permitir ao usuário da futura edificação a oportunidade de opinar sobre a maioria dos aspectos envolvidos na construção de sua residência. Tanto, sobre aqueles relacionados ao lado prático e objetivo da obra - tais como, a limitação de custos e prazos, como aqueles referentes a aspectos subjetivos da mesma - como cor, forma e caráter plástico da mesma, Figura 4.

A observação mais atenta dos aspectos subjetivos envolvidos no projeto da casa própria costuma revelar interessantes manifestações do inconsciente nas demandas apresentadas ao arquiteto, bem como da presença de simbolismos associados ao abrigo humano.

 

2. OBJETIVOS

Esse texto tem o objetivo de discutir a forma como os envolvidos no processo de elaboração do projeto arquitetônico se relacionam no que se refere à colocação de seus desejos, particularmente em projetos de residências unifamiliares. Pretende, com um olhar de arquiteto, levantar questões sobre a representação simbólica dos espaços construídos, com o intuito de estimular algumas reflexões que parecem se situar na interface da Arquitetura com a Psicanálise.

 

3. DESEJO E ARQUITETURA

A definição do que se entende por desejo na Psicanálise requer uma abordagem complexa que foge aos objetivos desse texto. Entretanto, uma breve discussão sobre o que se entende por desejo parece incontornável.

Segundo Zimerman (2001), a palavra desejo vem do latim desidius, que é composta pela adição dos termos de (privação) e sidius (estrela), e “alude à impossibilidade de alcançar e possuir uma estrela do firmamento, ou seja, à vontade do sujeito de obter algo que lhe está faltando, mas está muito longe”. 

Na obra de Freud, a noção de desejo está associada à satisfação (de maneira alucinatória) de certos tipos de impulsos, denominados de pulsões “libidinais que ficam reprimidas no inconsciente à espera de algum tipo de gratificação, tal como acontece com os sonhos”, os quais podem ser entendidos como uma forma alucinatória de “realização dos desejos” (ZIMERMAN, 2001).

Em Lacan, a noção de desejo pode ser decomposta em necessidade, demanda e desejo (KAUFMANN, 1996). A necessidade concentra-se na obtenção de um objeto e satisfaz-se ao alcançá-lo (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). Está associada à esfera biológica e pertence à ordem do real. A demanda encontra-se relacionada à linguagem e caracteriza-se por uma demanda de amor (pertencente à ordem do imaginário) e dirigida a outrem. O desejo pertence à ordem do simbólico e relaciona-se à fantasia. Para Kaufmann (1996) o desejo “propriamente dito não é nem necessidade, cuja ordem própria é substituída pela demanda, nem o amor que aliena a necessidade. Ele se forma na troca de lugar entre ambos” e está diretamente associado ao sentimento de falta (ou de vazio) experimentado pelo sujeito em relação a algo procurado, mas irremediavelmente perdido.   

Arte, Arquitetura e Psicanálise adquirem intimidade a partir da afirmação freudiana de que a sublimação de desejos se constitui em importante força motriz da arte. Mais tarde, durante o seminário intitulado A Ética da Psicanálise, ministrado entre 1959 e 1960, Lacan (1997) sugere que “em toda forma de sublimação o vazio será determinante”.  E vai mais além, ao afirmar que “a Arquitetura primitiva pode ser definida como algo organizado em torno desse vazio”, representado pela falta provocada por ‘alguma coisa’ irrecuperavelmente perdida, mas incessantemente desejada. Esse vazio seria “o verdadeiro sentido de toda Arquitetura” (LACAN, 1997). Essas afirmações ganham força quando se considera o espaço (vazio) como matéria-prima fundante da Arquitetura; da mesma forma que o som é da música, a cor é da pintura e a palavra é da literatura.

Existem várias definições do que seria Arquitetura (ZEVI, 1978; COELHO NETO, 1979). Nesse texto, considerar-se-á, de forma simplificada, que a diferença entre uma simples construção e um artefato arquitetônico está no fato desse último ser concebido com a finalidade de apresentar uma expressão plástica e espacial que afete seus usuários e observadores. A Arquitetura deverá necessariamente produzir sensações, que seriam tanto mais adequadas quanto mais aproximadas fossem do caráter e identidade relacionados à finalidade do edifício. Por exemplo, um salão de festas deveria produzir sensações de alegria, extroversão e congraçamento, enquanto um cemitério talvez devesse abrigar sentimentos de paz, serenidade e introversão.

A Arquitetura tem sido abordada ao longo da História do ponto vista construtivo, programático, formal e, sobretudo, estético. O Congresso mundial promovido pela União Internacional dos Arquitetos - UIA- em 1996, em Barcelona, já advertia os arquitetos para a necessidade de incorporar outros valores ao processo de concepção arquitetônica ao recomendar “mais ética e menos estética”.

Entre as atitudes éticas poderiam ser destacadas as preocupações com o ambiente construído e natural, bem como o respeito às opiniões e desejos dos usuários dos espaços arquitetônicos. Nesse sentido, observa-se que a maioria dos arquitetos, ao projetar residências para seus clientes, poucas vezes perguntou a seus clientes que caráter plástico e espacial os mesmos imaginavam para suas casas. Ou, em outras palavras, como seria a casa dos sonhos de cada um deles.

Do mesmo modo, poucos clientes pensam sobre o assunto. E os poucos que pensam apresentam, na maioria dos casos, demandas de natureza funcional, dimensional e/ou ambiental. Poucos são aqueles que têm clareza sobre como gostariam de ver suas próprias necessidades, demandas e desejos representados na configuração da sua casa. Ou ainda, quais os aspectos simbólicos e imaginários deveriam estar contemplados (LACAN, 1997). A Figura 5 mostra um interessante exemplo onde o próprio usuário implantou um ‘portão’ que, devido à sua vulnerabilidade prática, possui uma função claramente mais simbólica que real, como que demarcando um limite entre o espaço público e o privado.

 

4. O ARQUITETO

É crença corrente que o arquiteto é o profissional encarregado de proporcionar beleza às construções, reforçando cada vez mais a atitude dos mesmos em relação aos aspectos estéticos da concepção arquitetônica. Tratar-se-ia apenas de um “compositor de fachadas” ou, em outras palavras, de um criador de aparências (em geral supérfluas e caras), como revelava um pedido de um cliente que me disse: “Já tenho o fundamental; só me falta a fachada”.

Apesar de revelar uma falsa compreensão do verdadeiro papel profissional do arquiteto, essa crença produz um tipo de demanda, por parte dos usuários, que pode estimular interessantes reflexões, como será visto mais adiante.

 

4.1. Os condicionantes arquitetônicos

A discussão sobre o significado da Arquitetura é complexa e sujeita diferentes enfoques (ZEVI, 1978). Apesar de se constituir em afirmação polêmica, nesse texto, considerar-se-á que o diferencia uma simples construção de uma obra arquitetônica, é o sentido artístico inerente a esta última (Arquitetura = Construção + Arte). Arte sendo entendida como a capacidade de emocionar os usuários e observadores do edifício. Não apenas devido às características volumétricas do mesmo, mas, principalmente, através da configuração do seu espaço interior, esse vazio carregado de simbolismo que se apresenta como determinante em toda forma de sublimação (LACAN, 1997). Como mencionado no item anterior, a Arquitetura estaria presente em uma edificação quando a mesma apresentasse uma expressão plástica e espacial que fosse capaz de afetar os usuários do edifício, através de sensações subjetivas (emocionais e artísticas).

Por se tratar de uma arte utilitária de elevado custo de execução, a Arquitetura constitui-se em atividade complexa. Caracteriza-se pela necessidade de, com uma única proposta, atender às questões suscitadas pelos diversos condicionantes arquitetônicos envolvidos no projeto, os quais deverão ser respondidos através de uma síntese arquitetônica de todas essas demandas.

Entre os principais condicionantes encontram-se:

·         O programa de necessidades.

·         A legislação existente.

·         O sistema estrutural e construtivo.

·         A limitação orçamentária.

·         O terreno e suas particularidades (forma, topografia, acessos, vistas, vegetação).

·         Os fatores ambientais (insolação, ventilação, chuvas, luz natural, etc.).

·         O caráter plástico e espacial que a construção deve possuir (ou seja, as sensações subjetivas que definem a ‘personalidade’ e o ‘espírito’ da obra).

Esse último condicionante pode ser melhor entendido ao se comparar o arquiteto com um compositor de jingle, ao invés de a um “artista puro”. Esse último está sujeito apenas às limitações dos meios materiais de execução da obra artística, sendo o processo de criação totalmente livre e de natureza pessoal do artista. O compositor de jingle, no entanto, encarrega-se de compor uma música que atenda aos objetivos previamente definidos pelo publicitário que encomendou a música. Deve apresentar, portanto, o mesmo ‘espírito’ da peça publicitária da qual faz parte, expressando as emoções definidas pelos objetivos e público-alvo da propaganda encomendada.

A capacidade de produzir emoções previamente definidas pelo publicitário é o que caracteriza a habilidade do compositor de jingle. De forma similar, essa mesma capacidade deve estar presente no arquiteto quando da concepção arquitetônica. O projetista precisa saber expressar os desejos dos seus clientes, diferenciando-os dos próprios desejos; e, principalmente, diferenciando-os dos desejos de lucro do mercado imobiliário, que costumam se manifestar através de modismos, cada vez mais passageiros.

Na prática profissional a definição dos partidos arquitetônicos de residências perpassa a eleição de prioridades dentre aquelas relativas a cada um dos condicionantes listados acima. Envolve, fundamentalmente, um processo de escolha, que deveria estar subordinado, principalmente, aos desejos do usuário da habitação. Isso nem sempre acontece, conforme ilustram os exemplos apresentados a seguir.

 

5. A PRÁTICA PROFISSIONAL

Freud (1916) identificou a relevância do simbolismo da casa para seus moradores, ao considerá-la como expressão simbólica do corpo e observar o conteúdo sexual existente nos sonhos com casas (FREUD, 1900).

Na prática profissional, muitas vezes se verifica a dificuldade de identificar, com clareza, os conflitos entre os desejos dos atores envolvidos no processo de elaboração do projeto arquitetônico. Entre esses atores estão o usuário, o arquiteto e o mercado imobiliário, que são afetados pelo meio social, econômico e cultural onde os mesmos se encontram inseridos, como ilustrado na Figura 6.

 

5.1. Desejo e projeto arquitetônico

A relação entre os agentes envolvidos no projeto arquitetônico, ocorre em dois tipos de situação. Na primeira, encontram-se os edifícios produzidos para o mercado imobiliário. Na segunda, estão aqueles encomendados individualmente pelo próprio usuário.

Os edifícios produzidos para o mercado, se constituem em obras impessoais e são guiados por valores de mercado criados pelo marketing das imobiliárias por questões de custo da construção ou, simplesmente, por modismos, na maioria das vezes, importados.

As casas, por sua vez, se apresentam como demandas mais personalizadas, que podem possuir caráter plástico e espacial próprios, expressando da melhor forma possível, os anseios e desejos dos usuários no que refere aos seus aspectos simbólicos e imaginários. Entretanto, nem sempre isso acontece. Em parte, devido à formação profissional, que desconsidera esse aspecto e, em parte, devido à própria dificuldade dos clientes de conhecerem seus próprios desejos.

 

5.2. A colocação do desejo na prática profissional do arquiteto

A elaboração de projetos residenciais é repleta de situações onde os desejos de seus moradores se manifestam de formas variadas. Na maioria das vezes, entretanto, o arquiteto não está preparado para reconhecê-los. Em outros casos, nem o próprio cliente conhece seus genuínos desejos, autorizando o profissional a imprimir seus próprios desejos na casa onde outra pessoa, nesse caso o cliente, vai morar. Esses fatos são ilustrados a seguir, utilizando-se alguns casos extraídos da prática profissional do autor desse texto, descritos na primeira pessoa, acrescidos de outros casos tomados emprestados de outros profissionais.

 

5.2.1. Exemplo 1: Uma casa colonial espanhola

Ao me graduar em Arquitetura e Urbanismo pela UFPE, recebi a minha primeira encomenda de trabalho. Era uma colega das aulas semanais de ioga. Marcamos uma reunião para discutir o assunto. Elaboramos um programa de necessidades com respectivo pré-dimensionamento, para termos uma idéia da área construída e estimarmos o custo da obra e respectivo valor dos honorários profissionais. Tudo acertado, já me preparava para sair quando veio uma pergunta inesperada: “Como vai ficar a casa?”. Devo ter feito uma expressão de quem não havia entendido a questão. Ela, então, reformulou a pergunta: “Como vai ser a cara da casa?”. Continuei sem entender, mas afirmei que era cedo para saber, pois preciava examinar as possibilidades oferecidas pelo conjunto dos condicionantes arquitetônicos. Acertamos, então, uma data para a apresentação de um estudo preliminar.

Esbocei três possíveis partidos. Mas, como havia aprendido na faculdade, resolvi que apresentaria apenas o que eu considerava como sendo a melhor solução. Afinal, quem melhor para decidir sobre esse tema que o profissional da área. Da mesma forma que o médico é quem sabe qual o melhor remédio para o problema do paciente. Além do mais, a apresentação das três alternativas poderia confundir os clientes. Ou pior, levá-los a escolher a solução mais pobre, dentre as apresentadas.

Como o terreno situava-se em região sujeita a inundações sazonais, o partido desenvolvido propunha uma edificação simples, mas estruturalmente arrojada, assentada sobre pilotis para amenizar os inconvenientes dos períodos de enchentes. No pavimento térreo, localizava-se apenas um grande terraço e duas garages.

Os desenhos do estudo preliminar foram preparados e, no dia combinado, o projeto foi apresentado. A orientação e disposição em planta dos diversos ambientes agradaram ao casal. No entanto, uma importante queixa foi apresentada: “Nós sonhávamos com uma casa no estilo colonial espanhol”! Aquela demanda me deixou estupefato. Argumentei que o estilo colonial espanhol atendia aos requisitos de um contexto sócio-econômico de uma época e cultura, diferentes daquele momento que vivíamos. Para defender o arrojo e contemporaneidade de minha proposta, perguntei-lhes se gostariam de trocar o moderno carro que possuíam pelo transporte que se usava na época colonial. No final, não consegui convencê-los a mudar de idéia, nem entender o que os levava a querer uma casa colonial; muito menos espanhola. Mesmo assim, pediram para pensar sobre o assunto antes de decidir se iriam, ou não, aceitar o projeto.

Uma semana mais tarde, recebi uma ligação telefônica agendando uma nova reunião. Para minha enorme surpresa, o casal me informou que haviam decidido construir o projeto que eu havia apresentado, apesar de terem sido alertados por um calculista amigo de que a estrutura iria encarecer a obra, pois se tratava de uma “estrutura de prédio”. Fiquei curioso para saber o que havia proporcionado tão rápida mudança de opinião, uma vez que o casal parecia desejar firmemente uma casa no estilo colonial espanhol.

Percebi então, que o que os proprietários realmente desejavam era uma casa marcante e diferente, que demonstrasse todo o progresso sócio-econômico alcançado pelo casal. Nesse sentido a ‘nobreza’ de uma casa colonial tinha sido substituída pelo custo elevado de uma ‘estrutura arrojada’. Só então, vim entender a essência da pergunta feita por ocasião de nossa primeira reunião: “Como vai ser a cara da casa”? A imagem simbólica da casa, enquanto representação de ascensão social, ou para usar a expressão de Lacan (1997), “como representante dessa representação imaginária”. A demonstração dessa ascensão social representava o desejo daquele casal.

 

5.2.2. Exemplo 2: A tirania do projeto

Uma senhora, de Maceió, encomendou um projeto de arquitetura de interiores a uma conceituada arquiteta de outro Estado. Tratava-se da ambientação de um amplo apartamento recém construído.

A arquiteta elaborou um interessante projeto que agradou inteiramente aos proprietários. Depois de executada, a ambientação agradou, também, às visitas que foram conhecer o novo apartamento, produzindo muitos elogios ao bom gosto do espaço obtido.

A dona do apartamento tratou, então, de numerar e marcar o lugar de cada peça decorativa sobre as mesas com os respectivos números. Tal providência tinha como finalidade poder recolocá-las nos devidos lugares, após a limpeza das mesas e prateleiras sobre as quais se localizavam.

Durante as férias da faxineira do apartamento em foco, a nova empregada substituta, ao lavar as peças de decoração, inadvertidamente apagou os números que indicavam o local exato onde os objetos de decoração deveriam ser recolocados após a faxina. Após um primeiro momento de desespero, a proprietária telefonou para a arquiteta que havia elaborado o projeto e contratou uma visita técnica com o fim específico de recolocar os objetos nos “devidos lugares”.

Nesse segundo caso, percebe-se que a impessoalidade do projeto é levada a um extremo tão forte, que inibia os usuários para determinarem o melhor arranjo de sua própria casa. Mostra também o simbolismo existente nos elogios ao bom gosto do espaço obtido que, nesse caso, atendia a uma necessidade de aceitação tão intensa que levou a proprietária a abrir mão dos próprios gostos e desejos para morar na casa de “outro”.

 

5.2.3. Exemplo 3: A exclusividade do projeto

Em 1980, construí minha própria casa num terreno estreito e comprido que possuía uma bela vista do mar. A construção estava em seu estágio final quando um jovem engenheiro parou seu carro importado em frente à obra e pediu para falar comigo. Disse que vinha acompanhando o andamento da construção havia várias semanas, pois possuía um terreno em outra região onde pretendia construir sua residência de praia. Disse ainda que gostaria de me contratar para elaborar o projeto arquitetônico dessa residência, pois queria uma casa exatamente igual à minha, e a arquiteta que havia contratado recusou-se a copiar o meu projeto.

Inicialmente, me recusei a elaborar o projeto sob o argumento de que aquela casa que ele estava querendo repetir fora pensada para um terreno de largura reduzida e topografia acidentada. Afirmei, também, que o terreno que ele possuía permitia um projeto melhor que o meu. Nada feito. Ele insistia que queria uma casa igualzinha àquela.

Pedi algum tempo para pensar antes de decidir. Depois de muito refletir, comecei a me perguntar por que tanta relutância em repetir o projeto de minha casa, se possuía um carro igual ao de milhares de outras pessoas e aquilo não me incomodava. Percebi que noção de exclusividade estava presente na minha relutância, talvez associada ao fato de ser primogênito e de ter perdido a condição de filho único quando minha irmã nasceu. Resolvi então elaborar o projeto, e fiquei satisfeito com o resultado obtido.

Apesar da energia potencial que o desejo possui, os exemplos ilustram a dificuldade por parte dos arquitetos em identificar os genuínos desejos &


Por: Leonardo Bittencourt, arquiteto
Em: 15 de Dezembro de 2018



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