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O desamparo do jovem e a solidão de todos nós, nas questões transgêneros: Ignoramus!


 

        A pós-modernidade, nas palavras de Juremir Machado da Silva (Café Filosófico, 18/10/2014), pode ser resumida em uma afirmação simples: tudo o que a humanidade produziu até agora pensando ser um conhecimento definitivo é, na verdade, uma narrativa, um discurso, uma possibilidade. Em conhecimento, diz ele, não somos produtores de verdades profundas, mas de possibilidades; a ideia da verdade, construída por pensadores modernos, faliu. E cá estamos nós em nosso mundo contemporâneo, atônitos com as presumíveis consequências dos desmontes que, tal qual as geleiras da Antártida, descolaram, mostrando a natureza transitória da vida e de todas as coisas, apontando para desdobramentos de aconteceres humanos que apenas podemos supor. Dos contornos geopolíticos ao sentido do que é a verdade, nosso mundo se move. E é justamente neste cenário que temos que pensar.

 

 

 

      Sofremos com mudanças que tocam profundamente diversas questões humanas, instando-nos a ampliar nossas ideias, na tentativa de alcançar movimentos que se antecipam à nossa compreensão, e corremos com nossas teorias como se o fio que compõe o novelo do que nos caracteriza humanos pudesse se perder, uma vez que ele gira com uma rapidez alucinante. Talvez, mais do que nunca, sejamos representados pela imagem do caminhante que tem à sua frente o abismo, e cuja estrada se constrói na medida do seu passo. Porém, justamente por tudo isso, temos que buscar unir a agilidade com a cautela, a destreza com a prudência, para que a precipitação não tome conta de nossos atos embotando nossos pensamentos.

 

 

 

       Dessas transformações, trago para a nossa discussão a atualíssima questão nomeada disforia de gênero, que é o não reconhecimento do sexo biológico como sendo aquele subjetivamente percebido. Como alternativa para tais situações, profissionais de saúde têm proposto a alteração da biologia por meio de tratamentos hormonais e cirúrgicos, num processo denominado redesignação de gênero, com o intuito de, assim, alinhar a biologia ao sentimento subjetivo de pertencimento a determinado sexo. Aqui, não vou me debruçar sobre as teorias que dão sustentação à redesignação ou sobre as ideologias implícitas, nem tampouco, sobre a validação das intervenções adotadas. A minha contribuição será dirigida especialmente aos colegas psicólogos e psicanalistas para um fator inusitado que está implícito

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

na natureza do processo. A disforia de gênero é, essencialmente, uma avaliação da subjetividade – é a pessoa que declara a sua desadaptação ao sexo biológico. A centralidade do parecer diagnóstico estará com a Psicologia, e isso, além de incomum, implica extraordinária responsabilidade.

    A delimitação desse aspecto subjetivo como determinante do processo de redesignação fica bem clara em um trabalho recentemente publicado pela Revista Brasileira de Psicanálise, que relata o serviço de redesignação de gênero adotado no Ambulatório de Transtorno e Identidade de Gênero e Orientação Sexual – Amtigos, do Nufor-ipq-HCFMUSP. Ali somos informados que avaliação da disforia de gênero é baseada nas declarações do paciente, e que "A premissa é de respeito à autodeterminação do indivíduo" (Foigel et al., 2014, p. 76). No caso de adolescentes ou crianças, essa avaliação é complementada pelas declarações dos familiares, mas nenhum exame objetivo é apontado como auxiliar na avaliação do quadro.

 

 

 

 

     De um modo resumido, o processo é assim delimitado:

 

 

 

  1. Triagem psiquiátrica e clínica;
  2. entrevista psiquiátrica;
  3. avaliação psicológica, composta por uma entrevista semi-estruturada e com o objetivo de complementar a anamnese e compreender a demanda;
  4. sendo a hipótese diagnóstica acordada entre a equipe multidisciplinar, os pacientes são encaminhados para a psicoterapia em grupo de abordagem psicodinâmica, com dois terapeutas, um homem e uma mulher;
  5. com aproximadamente um ano de psicoterapia, o paciente é encaminhado para a hormonioterapia;
  6. após ter completado mais de um ano de terapia, e com a indicação dos terapeutas, a equipe multidisciplinar discute o caso e o paciente é encaminhado para as cirurgias.

 

 

 

  Do protocolo que ali encontramos podemos inferir que a psiquiatria avalia a saúde mental, a clínica médica avalia a saúde corporal, mas será a subjetividade declarada, matéria essencialmente da psicologia, que

 

 

 

 

 

 

 

determinará a existência ou não da disforia e, consequentemente, a indicação ou não da redesignação.    Digo de outro modo: exames médicos deverão atestar a condição física para as possíveis intervenções orgânicas, exames psiquiátricos avaliarão a sanidade mental do candidato à transição, mas somente um profissional de nossa área poderá avaliar com profundidade a posição subjetiva do paciente: se há indicação para o processo de redesignação ou em que nível as questões da disforia estão presentes no postulante ao tratamento. Não há, no artigo, declaração específica tributando ao psicólogo/psicanalista tal responsabilidade, mas ela é dedutível com base nas descrições dos trâmites e, especialmente, a partir da circunscrição da natureza do transtorno – que é puramente subjetiva.

 

 

 

    Que outro profissional, afora um especialista da psicologia, estaria preparado para escutar a subjetividade de um paciente ou acompanhá-lo no esclarecimento de seus conflitos? Qual especialista estaria preparado para, a título de exemplo, identificar o uso maciço da identificação projetiva induzindo toda uma equipe a realizar intervenções iatrogênicas? Isso se constitui em significativo encargo para a nossa área, especialmente se sabemos não haver outro parâmetro para a determinação do diagnóstico.

    Em minha trajetória, tive a grata oportunidade de ser presidente fundadora da Associação Brasileira de Psicossomática em João Pessoa, PB. Nessa condição, promovi e participei de cursos, congressos e jornadas interdisciplinares e multidisciplinares e posso declarar que nunca tive contato com trabalhos que pusessem nas mãos da psicologia um parecer de tamanha relevância. Longe disso, com frequência escutei de colegas a queixa sobre o lugar quase protocolar que lhes era atribuído nas equipes. Nas cirurgias bariátricas, por exemplo, a opinião do psicólogo se soma a critérios que levam em conta o grau de sobrepeso do paciente, ou seus índices glicêmicos, além de outros referentes orgânicos, atestando a indicação cirúrgica. As consultas da psicologia frequentemente são cumpridas como uma parte do trâmite necessário, porém dificilmente com peso decisório sobre a indicação. E nos processos de transição, quais critérios orgânicos seriam levados em conta? Debilidades orgânicas ou psiquiátricas, vou repetir, poderão contra-indicar o processo. Mas, quais dados orgânicos ou psiquiátricos sugerem que as intervenções serão indicadas? Fora os casos de intersexo, que são quadros 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

de outra ordem, desconheço marcadores orgânicos ou psiquiátricos que se somem à avaliação da subjetividade. Isso nos impõe uma importante tarefa; não há espaço para que nos confundamos com a mídia ou a opinião leiga, com ideologias ou modismos, não há lugar para que nos intimidemos em buscar e emitir a nossa posição como profissionais do nosso campo.

      E aqui, caros colegas da psicologia e da psicanálise, não me dirijo exclusivamente àqueles que lidam de um modo direto com a questão, como nos ambulatórios especializados, mas a todo profissional da nossa área que, de um modo direto ou indireto, tem sido questionado e convidado a opinar sobre essa novíssima e importantíssima matéria que atinge diretamente os nossos jovens. O que temos diante de nós é novo e pede investigação. Saber o que se sabe, mas também o que não se sabe, é mister em caminhos brumosos, e é o que diferencia posições dogmáticas daquelas adotadas pela ciência. Harari (2013) nos informa que na idade medieval, diante de questões para as quais não se tinha respostas, duas posições se diferenciavam: a dos religiosos, que buscavam a verdade nos livros eleitos como sagrados, e a dos cientistas, que professando a palavra em latim Ignoramus, abriam o espaço para a investigação. O "Não sabemos" em latim era a senha para o caminho da pesquisa, e suportar nosso não saber é a condição básica para a busca.

 

     A redesignação é um processo recente, ainda pouquíssimo conhecido, especialmente em seus efeitos orgânicos e psicológicos a longo prazo. Daquilo que sabemos, as graves e possíveis consequências recomendam a máxima cautela. No aspecto psicológico, por exemplo, há um fato inquestionável: um jovem, em natural estado de desenvolvimento, poderá vir a alterar seu modo de perceber a si e ao mundo, inclusive a percepção do próprio corpo, sem que isso seja uma patologia ou uma surpresa. No campo orgânico, se nos ativermos apenas aos efeitos adversos da administração hormonal, que deverá perdurar por toda a vida, os trabalhos especializados apontam uma lista extensa de gravíssimas consequências como doenças tromboembólicas venosas, diabetes tipo 2, doença cardiovascular, apneia do sono, aumento das enzimas hepáticas, ganho de peso, hipertensão, hiperprolactinemia, desestabilização de alguns transtornos psiquiátricos, entre outras. Soma-se a tudo isso o exponencial número de jovens que 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

desistem da transição sendo obrigados a assumir sequelas corporais, psicológicas e sociais difíceis de aquilatar.

 

 

 

      Para exemplificar, vou apresentar para vocês a história real de uma jovem que, tendo realizado os procedimentos de transição do sexo feminino de nascimento para o sexo masculino, agora está destransicionando, isto é, desfazendo todo o processo realizado e reassumindo sua identidade como mulher. Ela postou um depoimento no youtube, sob a insígnia "Destransição, por Cari Stella" / canal: Fêmea humana. Importa dizer que se trata de uma americana residente no estado do Oregon, uma região trans-amigável dos Estados Unidos, onde os processos de redesignação são facilmente acessíveis, custeados integralmente pelos planos de saúde, socialmente aceitos, até mesmo nos altos postos de trabalho. Trago um pequeno fragmento de sua fala, para que vocês tomem contato com a sua realidade, e em seguida vou evocar apenas elementos de sua declaração que se relacionam ao campo de nossa discussão.

 

         Para vocês que não me conhecem, ou ao meu blog, eu sou Cari, tenho 22 anos e sou mulher que está destransicionando. Na verdade, eu sou uma das mulheres que fala sobre sua transição pediátrica. Eu transicionei socialmente aos 15 anos e comecei os hormônios aos 17, e destransicionei depois do meu aniversário de 22. Mas eu acho importante, quando falamos desse assunto, realmente entender que pessoas como nós não são apenas estatística ou dados escritos, ou documentos que pessoas jogam para vocês. Somos pessoas de verdade, essa é uma consequência real da transição. Eu sou uma mulher viva de 22 anos, com uma cicatriz no peito, uma voz rasgada e uma barba por fazer porque eu não conseguia encarar a ideia de crescer e ser uma mulher, é a minha realidade.

 

 

 

 

 

 

    O que me fez eleger esse depoimento, em detrimento de outros de semelhante teor que se multiplicam na internet, foi, além de sua intensidade, a extraordinária capacidade dessa jovem de traduzir em palavras uma nova e doloridíssima experiência com a lucidez de quem pensou profundamente sobre a trajetória percorrida. Como num relato clínico, ao longo de dezessete minutos ela nos oferece a visão de quem desceu nas profundidades

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

de cavernas, inacessíveis para a maioria de nós, e delas trouxe o carvão, a pedra de roseta que poderá nos ajudar a compreender melhor o que ainda é enigma.

 

 

     De sua fala, destaco cinco pontos por ela elencados que me parecem diretamente relacionados ao tema que elegi para a nossa conversa:

 

 

 

  • O pequeno número de entrevistas psicológicas a que foi submetida para que a decisão pela transição fosse anuída pelo profissional da psicologia que a acompanhou.
  • Não ter sido esclarecida sobre o fato de que existem outras mulheres que sentem que não se encaixar no papel feminino – e que é possível ter aspectos masculinos sem que seja necessário se transformar num homem.
  • Não ter sido questionada sobre a sua decisão, em nenhum momento, e nenhuma outra opção ter-lhe sido oferecida – salvo aguardar os 18 anos para iniciar a sua transição.
    1. A sua saúde mental, contrariando o que lhe foi anunciado, piorou bastante com a transição, levando-a a sentir-se menos integrada e mais infeliz.
  • A gravíssima e pertinente questão: em que outro procedimento médico ou psicológico intervenções que mudarão a vida de modo definitivo e radical são realizadas sem que se faça exames ou testes, sendo considerado apenas aquilo que o paciente afirma desejar?
  • E, por fim, ela lança uma última questão: "Crianças que sofrem com disforia de gênero são encorajadas a explorar sua não conformidade de gênero?".

 

 

 

 

   E complementa: "Se elas quiserem transicionar quando maiores de idade, é decisão delas, elas serão adultas nesse momento".

  Tendo como guia o princípio hipocrático da não maleficência, primum non nocere, temos à nossa frente a tarefa de penetrarmos nesse campo. Porém, enquanto o tempo do maior esclarecimento não chega, o que devemos fazer? Se entendemos que em matéria tão nova as declarações

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

da jovem americana podem sem tomadas como relatos clínicos, teremos em seu depoimento algumas valiosas pistas. Em todas elas, o cuidado e a parcimônia estão recomendados – especialmente quando falamos de uma pessoa ainda em pleno processo de amadurecimento, em que as mudanças e transformações nas questões psicológicas são, não somente naturais, como esperadas.

   São mares tormentosos, os que vivemos, talvez sinalizando o encontro das águas que anunciam novas terras, canais borbulhantes que antecipam o encontro do continente. Dos marinheiros experientes, espera-se que a serenidade amealhada nos tantos mares já cruzados seja ajuntada à ousadia do descobridor que vai à frente de uma expedição ao desconhecido, pois nesse trajeto de mares nunca dantes navegados os que mais sofrem são os mais jovens. Eles não têm a experiência, mapa interno que nos orienta ainda que na escuridão; e, ao mesmo tempo, têm a intrepidez da juventude, movida pela ingenuidade de quem viveu pouco e pouco conhece sobre as dores e armadilhas da existência. Essa soma, da não experiência com a ingênua intrepidez, os posiciona na condição de presa fácil em território incógnito. Assim é no mundo animal, assim também o é no mundo dos homens. Períodos de interregno, no dizer de Zygmunt Bauman; transcorrem entre uma malha cultural que se esgarçou, e outra que ainda se constrói. Neles, concorda Bauman, são sempre os mais jovens, os mais vulneráveis. E aqui, o nosso lugar como profissionais da mente ganha densidade. Somos nós, estudiosos do funcionamento mental humano, que dispomos de teorias e técnicas para ajudar a integração das várias partes de uma pessoa, para iluminar áreas sombreadas da vida mental trazendo um pouco mais de claridade para os conflitos daqueles que nos procuram. E novamente Hipócrates aparece oferecendo o seu saber para a lida com aqueles que procuram ajuda para minorar a sua dor: "Curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre".

 

Referências

 

 

 

Foigel, M. E.; Gagliotti, D. A. M.; Saadeh, A. (2014). De adultos a crianças: análise retrospectiva e psicanalítica de serviço ambulatorial de população com disforia de gênero-transtorno de identidade de gênero-transexualismo. Revista Brasileira de Psicanálise, 48(4), 73-80.

Harari, Y. N. (2016). Uma breve história da humanidade (13ª ed.). Porto Alegre: LPM.

 

Sandra Trombetta

 

 

 

 

 

 

 

sandratrombetta@uol.com.br

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sandra Trombetta

 

 

 

 

 

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Por: Sandra Trombetta, psicanalista da SPR
Em: 05 de Dezembro de 2018



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