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Sobre o Pensar e a Criatividade: O que nos diz a psicanálise


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A psicanálise de Freud e as teorias do pensamento

 

A origem e a função do pensamento são temas que sempre ocuparam mentes estudiosas da existência humana, desde os filósofos antigos até os mais recentes pesquisadores da neuropsicologia.

 

 Com a teoria psicanalítica,Sigmund Freud foi o primeiro cientista a estudar os fenômenos iniciais da formação e evolução do pensamento, a partir da clínica com pacientes histéricas. Ele expõe sua teoria em um importante artigo de 1911, “Formulações sobre os doisprincípios do funcionamento mental”(FREUD, 1976).

 

Neste artigo, explicita que o bebê sente as demandas exigentes das necessidades internas (fome, frio) como um aumento da tensão psíquica ainda inespecífica, experimentadas como quantidades de excitação, a que ele reage com choro e movimentos musculares (esperneio). Essas impressões criam marcas no inconsciente como representação-coisa, sem a estruturação que é requerida pela linguagem. Entretanto, a mãe cuidadosa reconhece essa linguagem primitiva e atende aos reclamos do filho. Ele logo entenderá que choro = presença da mãe. A repetição dessas experiências prazerosas faz com que cada novo incremento da quantidade de tensão, de necessidade, assuma a forma de um desejo. Na hipótese de que a mãe não esteja presente para atender às suas necessidades, o bebê substitui o bico do seio pelo sugar do polegar, num movimento que Freud denominou satisfação alucinatória do desejo. Como esse recurso mágico fracassa, porque ele continua com fome, estabelece-se uma situação problemática que precisa ser resolvida. Assim, diante da ausência de satisfação, o aparelho psíquico vê-se impulsionado à concepção real do mundo externo, empenhando-se em nele agir efetivamente, constituindo na mente o princípio de realidade.

 

Freud afirma:                                         

 

           Nova função foi então atribuída à descarga motora, que, sob o domínio do princípio do prazer, servira como meio de aliviar o aparelho mental de adição de estímulos, e que realizara essa tarefa ao enviar inervações para o interior do corpo (conduzindo a movimentos expressivos, mímica facial e manifestação de afeto). A descarga motora foi agora empregada na alteração apropriada da realidade; foi transformada em ação.

 

A coibição da descarga motora (da ação) que então se tornou necessária foi proporcionada através do processo do pensar que se desenvolveu a partir da apresentação de ideias. O pensar foi dotado de características que tornavam possível ao aparelho mental tolerar uma tensão aumentada de estímulo enquanto o processo de descarga era adiado. (Freud, 1976, vol. XII, p. 280).

 

 

 

Desse modo, há a transição de uma descarga motora para aliviar as tensões, correspondente ao princípio de prazer, até uma ação que se inicia a partir das exigências do princípio de realidade. Para explicar melhor essa transição, recorro a Zimerman (2001), Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise (p. 319), que, ao discorrer sobre a formação do pensamento, e de acordo com Freud, diz o seguinte:

 

Para passar do princípio do prazer para o da realidade, o ego incipiente do lactante deve atender a três condições: a) conter a tensão psíquica sem a necessidade de descarregá-la imediatamente de forma motora; b) postergar sua satisfação; c) antecipar a previsão de que o objeto saciador (mãe) aparecerá.

 

 

 

E finaliza asseverando que “as primitivas representações-coisa vão se ligando mais fixamente a restos verbais, assim constituindo as representações-palavra, portanto o início do pensamento verbal” (idem).

 

Em relação à criatividade, já em “O mal-estar na civilizaçãode 1930, Freud fala de sublimação como técnica para afastar o sofrimento, pelo emprego de deslocamento de libido em nosso aparelho mental. O ser humano sempre intenta algumas formas de diminuir sua dependência do mundo externo, buscando satisfação em processos psíquicos internos. Por vezes a distensão do vínculo com a realidade é conseguido através das ilusões, reconhecidas como tais sem permitir, porém, que a realidade interfira em sua fruição. A região em que essas ilusões se originam é a vida da imaginação. Freud diz que na época em que o senso de realidade se efetuou, essa região foi isentada das exigências do teste de realidade e posta de lado para realizar desejos difíceis em sua consecução, preservando essa trilha em direção ao prazer. Penso que pode ser comparada a uma “reserva ecológica” na vida mental.

 

Neste momento me vem à mente uma experiência que Freud expõe em “Além do princípio do prazer”, de 1920. Ele observa uma criança de apenas um ano e meio de idade, que repetia sempre um jogo criativo, o qual lhe possibilitava, diante da ausência da mãe, (que já fora internalizada), fazer a travessia desse momento solitário: Com uma representação, quase teatral, do desaparecer e reaparecer da mãe. Nesta brincadeira, que foi designada como “Fort Da”, a criança utiliza-se de um brinquedo, fazendo-o sumir, procurando-o e fazendo-o retornar. Freud entendeu que o menininho encena e reencena o desaparecimento e o retorno da mãe, enquanto elabora a dor da ausência deste objeto amado, porque ele sabe e confia que voltará.

 

A Fantasia é compreendida por esse autorcomo forma de realização de desejos insatisfeitos com o intuito de uma correção da realidade insatisfatória. Em “Escritores criativos e devaneio” (1908 [1907]), ele explicita:       

 

O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre ele e a realidade. A linguagem preservou essa relação entre o brincar infantil e a criação poética. (p. 150).

 

 

 

Nesse mesmo artigo, ele aborda o ato criativo como uma forte experiência presente que desperta uma lembrança anterior, geralmente da infância, da qual surge um desejo que pode encontrar sua realização através da obra criativa. Dessa forma, ele expõe a importância do papel do inconsciente e sua influência nas formas como são organizadas as defesas diante de impulsos, desejos e angústias ocorridos no início da vida. (FREUD, 1976)

 

Victor Manuel Andrade (1977, RBP – vol. 33), ao escrever sobre Criatividade, Cultura e Estrutura Psíquica, diz que, segundo Freud, “a criatividade resulta da adaptação do psiquismo à necessidade de trocar o princípio do prazer pelo de realidade”, ressalta ainda que Freud dizia que “o ser humano não abre mão de um prazer experimentado anteriormente, de modo que, ao perdê-lo, tentará recuperá-lo de alguma forma”, e que foi à tentativa de elaborar a perda da onipotência do narcisismo primário, inerente ao princípio do prazer irrestrito, e à convivência com a frustração que Freud atribuiu a origem da criatividade. (ANDRADE, 1977, p.58)

 

 

 

Melanie Klein

 

           As contribuições de Klein foram importantes para o desenvolvimento do pensamento psicanalítico, considerando seus estudos sobre o funcionamento primitivo da mente. Essa autora não se dedicou diretamente às teorias do pensamento, entretanto trouxe importantes contribuições que permitiram a seus seguidores, notadamente Bion, desenvolverem importantes trabalhos facilitadores da compreensão dos enigmas que cercam a função do pensar.

 

Ela afirma que as primeiras relações com a mãe constroem as bases das relações posteriores. Entende que a pulsão instintual tem sempre um objeto, daí sua teoria das relações objetais, sendo o primeiro objeto o seio da mãe. Na teoria kleiniana, a primeira angústia sentida pelo bebê é a do aniquilamento e essa angústia mobiliza defesas primitivas voltadas para a preservação da vida.

 

             

 

    A mente da criança utiliza-se de uma defesa primitiva, a cisão para dividir o seio materno em seio bom (gratificador) e seio mau (frustrador), o que evidencia a separação entre amor e ódio. Essa divisão do objeto é um mecanismo característico da constituição da mente infantil em seus primeiros meses de vida e as relações com este primeiro objeto decorrem de sua introjeção e projeção, moldando as relações objetais por esses mecanismos num processo interativo. A esse momento inicial Klein denominou de posição esquizoparanoide,na qual as angústias e medos persecutórios são intensos e as incipientes relações de objeto são apenas relações parciais de objeto.  A posição esquizoparanoide antecede a posição depressiva, e esta representa uma evolução da mente, que consegue integrar o seio gratificador e o frustrador, sendo então capaz de estabelecer relações de objetos totais pela integração de objetos parciais. Entretanto, se acontecem dificuldades incontornáveis que não permitam que o bebê prossiga em seu desenvolvimento, a resolução da posição depressiva será prejudicada. Em decorrência desse fracasso pode surgir um reforço regressivo dos medos persecutórios e o fortalecimento de pontos de fixação para importantes patologias mentais. Mesmo quando a criança consegue chegar à resolução da posição depressiva, ela oscilará durante seus desenvolvimentos posteriores de uma para outra posição, em decorrência de sua própria vida instintual assim como das relações com o ambiente.

 

            Outra grande contribuição de Klein ao estudo do pensamento refere-se à sua descrição dos mecanismos de defesa do ego incipientes no bebê: negação, onipotência, dissociação das pulsões e objetos, seguidos das respectivas projeções e introjeções. Ela também desenvolveu uma concepção mais acurada daquele conceito que Freud já esboçara: a identificação projetiva, considerando que esse processo seria o protótipo de uma relação objetal agressiva.

 

            Seus estudos na obra “A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego”abordam aspectos importantes para a compreensão da função do pensar, como a conexão de problemas de aprendizado com fortes pulsões sádico-destrutivas e sua descrição inicial da pulsão epistemofílica,que de certo está ligada à função do pensamento. Klein enfatizou a ligação entre as pulsões sádicas e o desejo de conhecer, resultando em inibições da epistemofilia, ao ser invadido pelo sadismo. Nesse caso, podem surgir distúrbios da aprendizagem, da simbolização e do desenvolvimento intelectual. (KLEIN, 1996)

 

O primeiro tipo de defesa levantado pelo ego diz respeito a duas fontes de perigo: o sadismo do próprio sujeito e o objeto que é atacado, porque o sujeito acredita que as armas empregadas para destruir o objeto também se voltam contra si mesmo num movimento retaliatório. Assim, o ego em desenvolvimento vê-se diante de uma tarefa que não está ao alcance de suas possibilidades: dominar a imensa ansiedade que o acomete. Klein cita Ferenczi, que acredita ser a identificação a precursora do simbolismo. Surge da tentativa do bebê de encontrar em todo objeto os seus próprios órgãos e seu funcionamento, e chega à conclusão de que “o simbolismo é o fundamento de toda sublimação e de todo talento, pois é através da igualdade simbólica que as coisas, as atividades e os interesses se tornam o conteúdo de fantasias libidinais” (KLEIN, 1996, p. 254).O simbolismo torna-se então a base de toda fantasia e sublimação e da relação do indivíduo com a realidade em geral.

 

  Sabemos que o símbolo é uma categoria fundante da fala e o pensamento simbólico, uma característica fundamental do ser humano, que sem sua representação se confundiria com a natureza. Através da linguagem ele atravessa a fronteira da natureza em direção à cultura, e ela, a linguagem, se constitui no universo ao nosso redor enquanto comunicação, fantasia e realidade, ordenando o pensamento, o devaneio, a imaginação.

 

            Em seu Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise, Zimerman enfatiza essa ideia, e observa que “no referencial kleiniano, é fundamental a passagem exitosa pela posição depressiva para a aquisição da capacidade de simbolizar” (p. 387).

 

           

 

D. W. Winnicott

 

            Este autor oferece importantes contribuições para a compreensão do pensar em seus primórdios e durante o processo evolutivo.

 

            Entende que a comunicação nasce da transmissão dos estados afetivos entre a mãe e o bebê, e estes estados são percebidos por ele desde o útero. Em sua obra Da Pediatria à Psicanálise encontramos o termo por ele cunhado: preocupação materna primária, um estado de sensibilidade exacerbada necessária ao funcionamento no início da vida do bebê, do qual a mãe em seguida se recuperará. Winnicott afirma que tal estado é comparável a “um estado de retraimento ou de dissociação, ou a uma fuga, ou mesmo a um distúrbio num nível mais profundo, como, por exemplo, um estado esquizoide, onde um determinado aspecto da personalidade toma o poder temporariamente” (WINNICOTT, 2000, p. 401).

 

 O autor denomina mutualidade à dedicação da mãe suficientemente boa para o seu bebê e as respostas que dele recebe em um acontecimento harmonioso, interativo no campo da comunicação pré-verbal. Para ele, essa mãe suficientemente boa seria capaz de oferecer uma adaptação ao mundo, propiciando ao bebê a ilusão de que o seio materno faz parte dele. Essa experiência possibilita a onipotência e leva à mãe outra tarefa igualmente importante: desiludir gradativamente seu bebê.

 

            Objetos transicionais e fenômenos transicionais são conceitos introduzidos por Winnicott, para designar a “área intermediária entre o erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que já foi introjetado”. Ele acrescenta: “Incidem nessa área intermediária objetos que não fazem parte do corpo do bebê, embora não sejam plenamente reconhecidos como pertencentes à realidade externa” (WINNICOTT, 1975, p. 14). E ainda: “Existe como um lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externas separadas, ainda que inter-relacionadas” (Idem, p. 15).

 

O objeto transicional funciona como algum objeto parcial; assim como o seio, ele se situa como uma primeira possessão que seja “não eu”. Com o desenvolvimento da criança, quando o simbolismo é empregado, ela já será capaz de distinguir entre criatividade primária e percepção. Considera interessante comparar o conceito de objeto transicional com o conceito de objeto interno de Melanie Klein, quando ela afirma: “O objeto transicional não é um objeto interno (que é um conceito mental) – É uma possessão. Tampouco é (para o bebê) um objeto externo.” Ou seja: “Ele não está sob o controle mágico, como o objeto interno, nem fora de controle, como a mãe real” (Ibidem p. 24).

 

            O autor atribui grande importância à questão da criatividade. Para ele, é através da apercepção criativa que a pessoa sente que a vida é digna de ser vivida, numa atitude inversa àquela em que a realidade externa e todos os seus pormenores exigem que o indivíduo a ela se submeta e se adapte. Aquilo que é objetivamente percebido, até certo ponto foi subjetivamente concebido. Embora também seja evidente que a percepção subjetiva pode levar a certas ilusões e até, em casos patológicos, à aceitação de certos sistemas delirantes.

 

A criatividade que interessa a Winnicott relaciona-se com a abordagem do indivíduo à realidade externa suficiente para capacitá-lo a tornar-se uma pessoa ativa e parte integrada da comunidade. Aqui ele não se refere à criação de obras de arte, embora isso também seja função da criatividade com sua especificidade.

 

                                                O impulso criativo, portanto, é algo que pode ser considerado como uma coisa em si, algo naturalmente necessário a um artista na produção de uma obra de arte, mas também algo que se faz presente quando qualquer pessoa (...) .Está presente tanto no viver momento a momento de uma criança retardada que frui o respirar, como na inspiração de um arquiteto ao descobrir subitamente o que deseja construir e pensa em termos do material a ser utilizado de modo que seu impulso criativo possa tomar forma e o mundo seja testemunha dele. (Ibidem, p. 100).

 

 

 

            O mundo é uma fonte inesgotável de sentidos para uma mente criativa. O ser humano nunca se separa dos bons objetos internos introjetados ao longo de sua experiência vivencial, que segundo Winnicott pertencem a um espaço de ilusão e criatividade e possibilitam a construção de uma crença no mundo a partir de uma crença em si mesmo. Para ele, o brincar das crianças representa suas primeiras experiências nesse espaço de construção do próprio Self e retorna, de forma recorrente, ao espaço mental do adulto, numa relação potencialmente criativa com o mundo. As experiências agradáveis e as vivências amorosas nas relações com o mundo externo na tenra infância são estruturantes da subjetividade.

 

 

 

Wilfred R. Bion

 

            Bion descreveu de forma profunda e original a gênese e a evolução do processo de pensar, que embora em dimensão bastante abstrata, estão voltadas para uma aplicação na clínica.

 

A partir do trabalho desenvolvido por Bion com soldados no pós-guerra, abrem-se novos caminhos para o entendimento da mente psicótica; esta, conforme ele afirma, compõe uma fração variável da mente humana junto aos seus aspectos neuróticos. Sentiu-se fortemente motivado para aprofundar suas investigações sobre as questões da linguagem, da origem e função do pensamento ao perceber que os psicóticos podem vivenciar a palavra como objeto concreto e assim colocá-la dentro do outro.

 

No sentido oposto à ideia estabelecida de que o pensar produz o pensamento, Bion entende que o pensamento é anterior à capacidade de pensar. Em sua 4ª Conferência em Nova Iorque trata de seu conceito de “pensamento sem pensador” e observa ser este um pensamento errante em busca de um pensador para nele se alojar. Ele faz uma analogia com a obra de Luigi Pirandello Seis personagens à procura de um autor. Esta relata um ensaio de teatro que é invadido por seis personagens rejeitados por seu criador. Essas personagens tentam convencer o diretor da Companhia a encenar suas vidas, o que ao final conseguem, tornando-o seu autor. O conceito parece também estar próximo da ideia de que os elementos que compõem o universo têm sua existência anterior ao momento em que são desvendados, apreendidos pelo homem e utilizados em seu benefício, assim que o pensamento cientificamente desenvolvido o permite. Entretanto, já preexistem, e são revelados pela retirada do véu da ignorância (aletéa: desvendar a verdade).

 

Os estudos posteriores de Bion levam-no a construir uma teoria da origem e função do pensamento, em cuja base está a ideia de que é necessário que haja uma capacidade suficiente para suportar frustração, a fim de que possa se desenvolver na mente a função de pensar. Compreende-se que a capacidade para a função simbólica depende diretamente de a criança ter atingido a posição depressiva, porquanto o símbolo consiste na formação daquilo que vem ocupar o lugar vazio deixado por uma perda, com a elaboração da respectiva dor mental.

 

Como uma espécie de modelo cronologicamente desenvolvido, ele situa em sua gênese a pré-concepção, cujo modelo inicial se apresenta na expectativa (inata) do bebê por um seio que o satisfaça. Diante da realização positiva dessa expectativa, forma-se uma concepção com qualidade sensório- perceptiva. No caso da realização negativa – ausência do seio –, gera-se então um pensamento como possibilidade de resolver o problema, que surge como a primeira noção da ausência do objeto necessitado.

 

            Bion atribui uma importância fundamental à capacidade de rêverie da mãe real, que provê as necessidades básicas do seu bebê, e assim tanto as realizações positivas como as negativas podem ser utilizadas para aprender com a experiência.         Pelo quantum de inveja primária (M. Klein), a realização negativa também pode levar o bebê a equacionar a ausência de um seio bom com a presença de um seio mau, que serve para ser projetado na tentativa de lançar fora de si o excesso da tensão provocado pela frustração. Ao lado disso, se existe capacidade inata no bebê para tolerar as frustrações diante da experiência do “não seio – seio mau”, isso pode tornar-se um elemento do pensamento, um protopensamento,e desenvolver-se um aparelho psíquico para pensá-lo. Essa ideia está de acordo com a afirmação de Freud de que o principio da realidade é sincrônico com o desenvolvimento de uma capacidade de pensar.

 

            Esse autor estabeleceu uma diferenciação entre uma parte não psicótica da personalidade e outra psicótica, onde existe o predomínio da inveja, da voracidade, do uso intenso de identificações projetivas que podem levar a estados confusionais ou alucinatórios. Nesta parte psicótica, Bion afirma que pode coexistir uma tríade formada pela curiosidade intrusiva, arrogância e estupidez, a entorpecer a capacidade de pensar e favorecer a formação de um superego onipotente que cria suas próprias leis, busca impô-las aos outros e produz um sistemático ataque aos vínculos perceptivos. Nos casos em que não se forma a “capacidade de aprender com a experiência”, ela é substituída pela onipotência e pela onisciência, perdendo-se as diferenças entre o verdadeiro e o falso.

 

Os estudos referentes à epistemologia foram por ele aprofundados, especialmente àqueles que dizem respeito à área do conhecimento (k) ou (–k). Desenvolveu o conceito elo ou vínculo para designar uma experiência emocional mediante a qual duas pessoas, ou duas partes de uma mesma pessoa (consciente e inconsciente; id e superego; parte psicótica e parte não psicótica da personalidade; etc.), estão relacionadas uma com a outra. Bion considera que pelos menos três emoções básicas são fatores sempre presentes em qualquer vínculo: as de amor (L), ódio (H) e conhecimento (K), ligando a tendência epistemofílica do ser humano à normalidade ou patologia da função do conhecimento. Ao falar desses vínculos, ele lembra que descrever as relações entre a mãe e o bebê apenas com base no amor e ódio não é suficiente, isso porque há também a necessidade de um vínculo desejoso de compreender a criança (K), do qual nos fala Winnicott. 

 

             Bion acrescenta que o pensar consiste numa “visão binocular”, em uma integração de perspectivas diferentes, tal como uma imagem que não se forma a partir do olho direito ou do esquerdo, senão de uma conjunção de ambos. Para ele, o pensamento é uma construção emocional. As fantasias no modelo alimentar e sexual são a base. A identificação projetiva normal gera pensamentos a partir da experiência emocional e da pré-concepção. A pré-concepção inata, ao encontrar a realização, cria o conceito. O pensamento sem pensador é o pensamento concreto; ele permite, com base no dado sensorial, alcançar o pensamento abstrato, gerador de sentido. Este autor compreende que a rêverie, função materna ou função Alfa, é capaz de transformar dados sensoriais em estado bruto, partículas, ou elementos Beta (carregados de tensão), em elementos Alfa, fontes de significação. Eles criam a membrana de contato. A mente da mãe é introjetada como modelo. O seio pensante da mãe significa a experiência emocional. Eles são a matéria da mente dos devaneios, sonhos, mitos e pensamentos.

 

Seus conceitos psicanalíticos são alicerçados nos vínculos humanos. O ser humano tem uma dependência primordial do objeto e da função materna e paterna na triangulação edípica, trazendo para a compreensão dos processos do pensar uma contribuição inestimável ao demonstrar que, de início, esses processos se originavam de um par – Mãe/Bebê – que funciona como continente/conteúdo. Por introjeção de uma função que denominou Alfa, a mãe pode receber os elementos Beta (não pensáveis) carregados de temor, elaborá-los e devolvê-los ao bebê (depois de depurá-los, desintoxicá-los) na condição Alfa, para que possam ser pensados.

 

            Segundo essa teoria, a criança dissocia seu temor da morte e o coloca no seio da mãe; esta então o desintoxica e devolve o que é recebido como um temor leve. Entretanto, se essa mãe afetuosa não está disponível ou se existe algum problema de hostilidade no bebê ou na mãe, que estraga a fantasia onipotente e impede que o seio desintoxique o temor, “se tem a impressão de que esse objeto mau despoja as projeções do bebê, em forma ávida, invejosa e hostil do significado que pode ter tido”. E acrescenta: “Assim o terror de morrer que a criança sente se pode colocar no seio materno, mas quando o recupera (...) o terror da morte foi despojado inclusive do significado que tinha e se converteu em um terror sem nome”. (Zimerman, 2004, p.135).

 

            Em sua obra, Bion faz uso abundante de modelos teóricos para a compreensão dos processos psíquicos. Ele emprega modelos emprestados da biologia, como, por exemplo, o aparelho gastrintestinal, o qual sugere em seu processo assemelhar-se à forma como se constrói o aparelho para pensar. É muito conhecida sua expressão “evacuação”, referente à expulsão dos protomentais elementos Beta, sob a forma de identificações projetivas em excesso. Outro modelo utilizado é o da fome, que é associado à imagem de um seio que não satisfaz, mas que, por ser pela criança necessitado, torna-se um “objeto mau”.

 

            O trabalho do analista, a exemplo do par inicial, consiste em receber do paciente, sob a forma de projeções e identificações, os elementos que não podem ser por ele pensados, decodificá-los e devolvê-los como um conteúdo pensável, e transformar a identificação projetiva excessiva em capacidade de conter e pensar. Dessa forma, Bion ensina que a maior tarefa do analista é a de auxiliar o seu paciente a desenvolver a capacidade para pensar as experiências emocionais, buscando conferir significados para seus conteúdos mentais.

 

 

 

            Thomas Ogden

 

            A psicanálise hoje enfatiza mais o tipo de trabalho psíquico que realizamos com as nossas experiências de vida. Mais no modo de pensar do que no que se pensa. Esse autor percebe como germe desse enfoque as ideias de Winnicott, para quem era mais importante a capacidade de brincar do que o conteúdo simbólico da brincadeira, e de Bion, que analisou o processo de pensar/sonhar em maior profundidade do que os seus significados simbólicos.

 

          Ogden descreve três categorias de pensamento:

 

Pensamento mágico: cria uma realidade psíquica que se sobrepõe à realidade externa, subvertendo o pensamento genuíno e sua evolução, o que levaria ao desenvolvimento psíquico. Seu objetivo é evadir-se do enfrentamento da verdade em relação às experiências subjetivas. Seguindo a tradição de Bion, Ogden, quando se refere a pensamento, refere-se também a sentimento. Usa o termo pensamento mágico a fim de designar o pensamento apoiado numa fantasia de onipotência para criar uma realidade psíquica que ele vivencia como se fosse mais real que a realidade externa.

 

Pensamento onírico: (nossa forma de pensar mais profunda): percebemos uma experiência emocional de várias perspectivas ao mesmo tempo, por exemplo: os dois processos primário e secundário, simultaneamente.

 

É semelhante ao que ocorre durante o processo de sonhar, mas atua também quando estamos acordados. Mesmo sendo uma atividade mental essencialmente inconsciente, age em conjunto com pensamentos pré-conscientes e conscientes. Esta forma de pensamento permite enxergar experiências de vida sob variados pontos de vista ao mesmo tempo e possibilita penetrar num conjunto rico e não linear de conversas conosco mesmo sobre essas experiências. O sujeito vivencia uma experiência e lhe confere sentido a partir de diferentes pontos de vista de seu self infantil e do self maduro. Todos sentimos necessidade de sonhar, de dar um significado pessoal às experiências que vivemos e de sonhar as que viveremos.

 

           Ogden esclarece:

 

                As conversas não lineares e em camadas que constituem o pensamento onírico ocorrem entre aspectos inconscientes da personalidade, o que Grotstein (2000) chamou de “o sonhador que sonha o sonho” e “o sonhador que entende o sonho”... Esse pensamento resultaria numa confusão maciça se ocorresse conscientemente enquanto estamos cuidando das tarefas da vida de vigília. (Ogden, 2012, p. 200-201).

 

 

 

Ele reconhece que essa forma de pensamento, sendo mais abrangente, penetrante e criativa, é capaz de gerar um crescimento psíquico genuíno. Entretanto, também lembra a dificuldade de realizar um trabalho psicológico inconsciente durante o sonho; quando o sujeito alcança os limites da própria habilidade de sonhar suas experiências perturbadoras, precisa que outra pessoa o ajude a sonhar os sonhos para ele impossíveis de ser sonhados.

 

Pensamento transformativo: esse tipo de pensamento cria um novo modo de ordenar e organizar as experiências, possibilitando o surgimento de novas formas de sentir e de se relacionar com o objeto. Ogden magistralmente exemplifica o pensamento transformativo ao citar uma passagem do Evangelho, esclarecendo que a está tomando como literatura e que as figuras e acontecimentos são expressões de verdades emocionais. Nesta passagem, Jesus é desafiado por escribas e fariseus:

 

            Os escribas e fariseus trouxeram até Ele uma mulher surpreendida em adultério. Forçaram-na a ficar em pé no meio de todos e disseram a ele: “Mestre, esta mulher foi apanhada em flagrante ato de adultério. Assim sendo, Moisés, na Lei, nos mandou que tais mulheres fossem apedrejadas. Todavia tu, que dizes a respeito?”. Eles falavam assim para prová-lo e terem alguma coisa de que acusá-lo. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia na terra, com o dedo, como se não tivesse ouvido. Porque insistiram na pergunta, Ele se levantou e lhes disse: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”. E novamente inclinou-se e escrevia na terra. Então, aqueles que ouviram isso, sendo condenados por sua consciência, foram se retirando um por um, começando pelos mais velhos até o último. Jesus foi deixado só, e a mulher ficou de pé onde estava. Quando Jesus se ergueu, não vendo a ninguém mais além da mulher, disse a ela: “Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?”. Disse ela: “Ninguém, Senhor!”. E assim lhe disse Jesus: “Nem Eu te condeno. Podes ir e não peques mais”. (Evangelho segundo São João, 8: 3-11).

 

 

 

Ogden nos mostra que esse movimento de Jesus – de escrever no chão – quebra a urgência do movimento em direção à ação e cria um espaço para o pensamento. Ele ressalta a importância desse espaço tanto para o que falava quanto para os que ouviam. A pergunta de Jesus que vem em seguida surpreende e convida cada um a pensar em como lidar com suas próprias experiências enquanto seres humanos.

 

           E ele explica o que o pensamento transformativo significa:

 

             É uma forma de pensamento onírico que envolve o reconhecimento das limitações das categorias de significação consideradas, até então, como as únicas – por exemplo, obedecer ou não à lei – e, em seu lugar, criar categorias fundamentalmente novas – um modo radicalmente diferente de ordenar a experiência – antes inimaginável. (Ogden, p. 204).

 

 

 

Não se trata simplesmente de substituir uma escolha binária por outra. Segundo Ogden, o psicanalista pede a si mesmo e aos seus pacientes para chegar aos pensamentos transformativos, mesmo sabendo quanto é difícil alcançá-los. Ogden diz: “Na minha experiência anterior e na maioria das vezes, é o resultado de anos de trabalho analítico lento e meticuloso, que compreende ampliar a capacidade do par analítico para sonhar aspectos da experiência antes não sonháveis do paciente” (Idem, p. 205).

 

 Concebe essas três formas de pensar convivendo mutuamente e atuando em tensão dialética na relação com os vários estados de funcionamento mental, para criar, manter, negar ou distorcer aspectos da experiência do pensamento. Nenhuma delas existe em estado puro, nem há relação progressiva de uma em relação à outra. 

 

A filósofa Hannah Arendt, em sua obra Origens do totalitarismo, afirma que o mal é o vazio do pensamento, pois este procura compreender as raízes das coisas. Exercitar o pensamento é então uma forma de afastar o mal. Assim, os regimes políticos totalitários pretendem favorecer a ausência do pensamento, a alienação da realidade.

 

Arendt diz textualmente:

 

Do mesmo modo como o terror, mesmo em sua forma pré-total e meramente tirânica, arruína todas as relações entre os homens, também a autocompulsão do pensamento ideológico destrói toda relação com a realidade. O preparo triunfa quando as pessoas perdem o contato com seus semelhantes e com a realidade que as rodeia; pois justamente sem esses contatos, os homens perdem a capacidade de sentir e de pensar. O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe diferença entre o fato e a ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre o verdadeiro e o falso (isto é, os critérios do pensamento). (Arendt, 2007, p. 526).

 

 

 

            Podemos então verificar, do po


Por: Gilvaneide Mota Malta Brandão, SPR e NPM
Em: 15 de Dezembro de 2018



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